terça-feira, 27 de maio de 2025

Descartes (1596 - 1650): "Meditações sobre a Filosofia Primeira (1641) (Trechos)

PRIMEIRA MEDITAÇÃO

Sobre as coisas que podem ser postas em dúvida

/1/ Faz alguns anos já, dei-me conta de que admitira desde a infância muitas coisas falsas por verdadeiras e de quão duvidoso era o que depois sobre elas construí. Era preciso, portanto, que, uma vez na vida, fossem postas abaixo todas as coisas, todas as opiniões em que até então confiara, recomeçando dos primeiros fundamentos, se desejasse estabelecer em algum momento algo firme e permanente nas ciências. Mas, como tal se me afigurasse uma vasta tarefa, esperava alcançar uma idade madura (...). Por isso, adiei por tanto tempo que, de agora em diante, seria culpado, se consumisse o tempo que me resta para agir.


/2/ É, portanto, em boa hora que, hoje, a mente desligada de todas as preocupações, no sossego seguro deste retiro solitário, dedicar-me-ei por fim a derrubar séria, livre e genericamente minhas antigas opiniões.

    (...) se os fundamentos se afundam, desaba por si mesmo tudo o que foi edificado sobre eles, atacarei de imediato os próprios princípios em que se apoiava tudo aquilo em que outrora acreditei.

/3/ Com efeito, tudo o que admiti até agora como o que há de mais verdadeiro, eu os recebi dos sentidos ou pelos sentidos. Ora, notei que os sentidos às vezes enganam e é prudente nunca confiar completamente nos que, seja uma vez, nos enganaram.

(...)

/5/ (...) Em verdade, com que frequência, o sono noturno não me persuadiu dessas coisas usuais, isto é, que estava aqui, vestindo esta roupa de inverno, sentado junto ao fogo, quando estava, porém, deitado entre as cobertas! Agora, no entanto, estou certamente de olhos despertos e vejo este papel, e esta cabeça que movimento não está dormindo, e é de propósito, ciente disso, que estendo e sinto esta mão, coisas que não ocorreriam de modo tão distinto a quem dormisse. Mas, pensando nisto cuidadosamente, como não recordar que fui iludido nos sonos por pensamentos semelhantes, em outras ocasiões! E, quando penso mais atentamente, vejo de modo mais manifesto que a vigília nunca pode ser distinguida do sono por indícios certos, fico estupefato e esse mesmo estupor quase me confirma na opinião de que estou dormindo.


(...) 

Descartes duvidará novamente da certeza dos sentidos pondo em dúvida a forma como o mundo lhe aparece. Será o mundo na realidade diferente do mundo como lhe aparece representado?  
Como temos certeza de que as coisas que apreendemos pelos sentidos não são na realidade diferentes da maneira como as sentimos?


/9/ (...) Mas, de onde sei que (...) eu sinta todas essas coisas, e que, no entanto, todas elas não me pareçam existir diferentemente de como me aparecem agora?


*** O texto de Descartes nos permite pensar na (falsa ...) impressão de que o céu é azul. Na verdade, a luz solar, que é branca, é uma mistura de todas as cores do arco-íris. Ao atravessar a atmosfera, a luz solar é refratada e espalhada pelas partículas de ar, principalmente pelos átomos de oxigênio e nitrogênio.  Daí, o Efeito Rayleigh, ou seja, a luz azul, com comprimento de onda mais curto, é espalhada mais do que a luz vermelha, com comprimento de onda mais longo. Isso faz com que mais luz azul seja dispersa na direção do observador, dando ao céu "a cor azul".  Embora a luz azul seja a que mais se espalha, as outras cores também são espalhadas, mas em menor medida. A luz vermelha, por exemplo, é espalhada menos e tende a ser transmitida em maior quantidade, o que faz com que o céu seja mais azul durante o dia e possa ter tonalidades mais avermelhadas ao amanhecer e ao pôr do sol.


(...)


/12/ Suporei, portanto, que há não um Deus ótimo, fonte soberana da verdade, mas algum gênio maligno e, ao mesmo tempo, sumamente poderoso e manhoso, que põe toda a sua indústria em que me engane: pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas externas nada mais são do que ludíbrios, ciladas que ele estende à minha credulidade. Pensarei que sou eu mesmo desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, mas tenho a falsa opinião de que possuo tudo isso. Manter-me-ei obstinadamente firme nesta meditação, de maneira que, se não estiver em meu poder conhecer algo verdadeiro, estará em mim pelo menos negar meu assentimento aos erros, às coisas falsas. Eis por que tomarei cuidado para não receber em minha crença nenhuma falsidade, a fim de que esse enganador, por mais poderoso e por mais astuto que ele seja, nada possa me impor.

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Espero que tenham apreciado a leitura do texto de Descartes. Para nos despedirmos vale chamar a atenção para a presença de três conceitos importantes no sistema cartesiano: 1) a "dúvida metódica".   A dúvida tem uma função metódica na filosofia de Descartes. Ao colocar em dúvida a verdade das coisas conhecidas, o filósofo não visa manter esse estado de dúvida.Com a "dúvida metódica", ele questionará conhecimentos e crenças até então aceitos, buscando assim encontrar verdades claras e distintas, que pode afirmar com a liberdade da própria razão. 2) "dúvida hiperbólica":  a dúvida é elevada ao máximo; 3) "moral provisória": Descartes entende que podemos adotar provisoriamente certos conhecimentos e crenças obtidos ao longo da vida até que tenhamos realizado o trabalho de colocá-los em dúvida a fim de, em um segundo momento, reafirmá-los como verdadeiros ou refutá-los.

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Perguntas para concluir: 

    1)   O que Descartes está buscando quando logo após elevar suas dúvidas ao máximo ("dúvida hiperbólica") diz "Manter-me-ei obstinadamente firme nesta meditação, de maneira que, se não estiver em meu poder conhecer algo verdadeiro, estará em mim pelo menos negar meu assentimento aos erros, às coisas falsas".

    2) Qual é a função da dúvida na filosofia de Descartes?  

   3) E, para você, hoje em dia, colocamos as informações que recebemos pelos meios de comunicação e pelas redes sociais em dúvida ou aceitamos tudo como verdades e ainda espalhamos, utilizando o poder dos apps de conversa?


Referência bibliográfica

DESCARTES, 2013. Meditações sobre Filosofia Primeira. Edição em Latim e em  português. Tradução, nota prévia e revisão de Fausto Castilho. Campinas: UNICAMP.

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